domingo, 3 de outubro de 2010

ESCADAS DE QUEBRA-COSTAS

(Este conto foi publicado na Revista O Instituto – Revista Científica e Literária, nº 139 – Coimbra, 1979. Escrito em Janeiro de 1980, foi publicado com data anterior por motivos de ordem e cronologia editoriais daquela revista, que aliás já não existe. Fundada em 1880, foi a revista científica e literária mais antiga do país. )


Escadas de quebra-costas

Mia um gato diante dos meus olhos e arrima-se para debaixo de um carro. Sou eu que me aproximo. Guarda-se de mim e espia as minhas pernas. Começo a subir as escadas de Quebra-Costas e conto as vezes que as subo durante o dia.

No patamar da casa velha, com janelas de vidro, ao meu lado esquerdo, ei-lo, esse cão nababo a arreganhar-me as dentolas e a rosnar com todo o seu peso. Não é por nada. Mas lembra-me um porco de criação. Ajeito-me e penso:

- Cão estúpido.

Na casa dos móveis, do lado direito, montra nova metalizada, espera uma garota os seus clientes. Passa o tempo agarrada às unhas, roendo-as. (Digo-vos que não gostava de ser unha). Espreita-me. Finjo que não a vejo, mas tenho uma frincha do canto do meu olho direito aberta na direcção da criatura. É mamuda e baixa. Ama um homem atravancado, sisudo e suicida como ela. (Os suicidas gostam dos suicidas). Há seis anos que eu sei deles. Primeiro, assisti-lhes ao namoro. Agora contemplo-os no beijo rotineiro e garanto-vos que é uma pasmaceira. Aquilo é beijo de cadáveres. Ela ainda tem um sorriso claro. De vez em quando. O meu amigo alfaiate diz que é um riso uterino, sem macho.Por falar dele, ei-lo à janela atirando-me:

- Então o basquetebol?

- Pingolinhas – defendo-me.

- Moinices – dou-lhe razão.

A mulher dele ajuda também. Hoje deve ter-se esquecido da dentadura e parece que está a aprender a falar:

- Olhe que ele é um malandro – saem as palavras todas embrulhadas.

Passa uma miúda. Afunda as nádegas e trá-las de novo à tona. É um barco no alto mar.

- Psssssss... – o garoto mete-se com ela. Levanta a pasta do chão e ginga do mesmo jeito.

- Eu preciso tanto – roga o companheiro.

- Vou dizer à tua mãe – ataca o outro.

- Ora, é da TV – ombreia assim o colega. E deixa-se afrouxar na pedalada da subida. Apanha um papel do chão e mete-o no bolso. Na torre dos lentes, a “cabra” cacareja.

- Olha a escola – grita um dos garotos. E catrafilam-se em marcha acelerada. Curvam os dizeres. Mas eis que escuto um burburinho estranho. Volto-me e, no fundo da subida, à curva do Arco de Almedina, uma sarabanda de mulheres ensaia um arraial de galhetas. Uma senhora fina abanica-se em frente da boleira e esta diz-lhe assim:

- Sua cricalha.

Só visto. Espetam-se, empurram-se, retrancam-se, goelam-se e puxam os cabelos uma da outra. Bem vistas as coisas é uma teia de aranha que entre neles se desenha. Do cimo de Sobre-Ripas assobio e miro a cena. Mestre alfaiate diz-me:

- Olha a pouca vergonha que ali vai – e franzina o nariz.

A senhora da livraria, debaixo dos óculos de lentes grossas, chega-se também. Não fala e é difícil saber se ri ou se está séria.

- Liberdades – grunhe a velha rabuja dos galos na cabeça. É feia, velha e chata. E na vida não aprendeu mais nada a não ser o comentário do costume: “Liberdades”. Di-lo como se fosse presidente do município.

A amiga reformada das bolachas, benfeitora de cães e de gatos, não podia faltar. Desce as escadas e quase resvala na esquina de uma, tal a atenção prestada à pega das galdérias.

- Se alguma vez se viu coisa assim – e desafasta-se.

Depois reza uns maldizeres às escadas ( e elas é que se hão-de importar com isso ) e apressa-se a ir ao mercado para comprar carapaus para os seus gatos. Tresanda a gato.

Vem também a velhinha da porta em frente do convento da sé. É simpática e frenética. Bule os dedos das mãos, o queixo, os olhos, o pescoço. Todo o seu corpo é um delírio de nervoso miudinho. Mas todos nós gostamos dela.

Outra coisa aparece: o cauteleiro que há-de ter morte macaca. Traz água na fervura. Mói com pau de vassoura a miséria da mulher e dana-se que nem cão. ‘tá aí, ‘tá virado mortinho da conceição, por engasgo do coração. E saltita a roncar:

- As gajas amanhem-se.

A da cabeleireira, abre a janela e grita:

- Oh Felismina !

A outra, “amanda-se” das bandas do fotógrafo e esganiça:

- Lá vou.

O polícia, coitado, afana-se para as sossegar. Sua. Por um momento hesita. Mas acaba por se decidir a multar um carro mal estacionado e deixa que as duas mulheres se entendam. Cumprimenta um dêérre qualquer e o dêérre fica inchado por ser reconhecido.

Entretanto, o da casa das canetas lastima-se:

- Havia de ser logo nas minhas barbas.

Eu (que faço eu?) traço o meu o caminho. Subo mais cinco lances pequenos e nodosos. Penso numas trouxinhas de carne. Como elas me ensalivam a boca, meu deus! A mulher de mestre alfaiate sorri, mas não mostra as gengivas. A mulher de mestre alfaiate é uma senhora simpática. E eu digo:

- Bom. Vou andando...

- Isso. Com deus é que é o caminho.

As desentendidas afrouxam o burburinho. Tenho vontade de dizer outra coisa, mas não digo. O electricista descobre-me e trava o passo:

- Pescador da agrela !

- Felino – digo eu.

- A vida ? – pergunta e coça o cabelo.

- Tristinha.

- Some-te.

É o que eu quero fazer. Aos poucos, difundo-me. Torno-me transparente. Mas se me perguntais o que vi, direi que nada vi. Nem beliscadura nem arranhão de gente. Não sou testemunha de nada. À minha frente, o velho das duas bengalas lesma-se ao descer as escadas e larga umas bufas:

- Velho porco – penso eu.

Está um miúdo ao cimo delas a contar caricas. Ouço-o muito bem: dezanove, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três e... pára.

- Larga – e puxa com violência – essa é minha.

O amigo conta alternadamente. Se fosse eu, já me tinha enganado. E continua:

- ... vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis... esconde cromos no cós roto das calças. Tem as mãos sarapintadas de sujo, aborca-se no chão e não vê a nuvem negra do lado do poente. Somos capazes de ter chuva, não tarda muito. No entanto, o resto do céu é azul e as escadas estão prenhes das marcas das solas dos nossos sapatos e das nossas botas e das cagadas dos cães e das pinturas políticas. No fundo das paredes, a ladearem as escadas, verte-se um fedor a mijo e baba de cão que faz cama nas calçadas.

Mas quem é que eu vejo agora? O doido do Cardoso, claro. Está pregando a sua ladainha e larga uns berros medonhos. Parece-me zangado e passeia-se com um petromax nas mãos. Procura uma coisa num canto qualquer. Dele, mofam duas moças. O empregado o café da esquina mofa também. E uma dona saindo da farmácia lamuria um batente de letras e preceitos. Mas o Cardoso marimba-se. Faz trampa para todos eles. Eu vi isso. E diverte-se com uma charada assim:

Pelo sim e pelas tretas

O melhor é pingoletas

Isto não faz sentido. Ele fede vinho pelos calos dos dedos dos pés. E está feliz. É preciso que as coisas façam sentido para que se seja feliz? Ora, aí está o que vos preocupa: a felicidade. Aquele doido é feliz. O basalto e o cimento das escadas não o preocupam. A Marisa não o preocupa. Nem o João. Tu também não. Eu não o preocupo. E, no entanto, o o cimento e o basalto das escadas têm sido gastos por quase todos nós. As suas esquinas estão polidas pelo arrasto da nossa importância. Bem sabes, a Marisa é muito importante. Tal como o João. Tu também és importante. Eu sou importante. Mas para ele, a nossa importância é chalaça.

Do lado do salão de jogo que eu já não atino daqui, a garotada diverte-se em cima de uma bugiganga e o safardana do cauteleiro aguça de novo a boca para desovar meia dúzia de palavras beras. É nero e rançoso. Quando o vejo guardar a motorizada no atriozinho atulhado de gatos e de cães que dá para a casa da senhora amiga dos animais, reparo que ele poisa a máquina, devagar e lambe-a como bicho logo desatando naquela brutidade de pancadaria e asneiras sobre a mulher. O tipo é fúfio. E ainda por cima, berra que a filha da mulher passa a vida no ranfanço e é rameira. Todos o sabem.

Eu chego, finalmente, ao cimo das escadas. O sacristão da sé olha-me, nequício e invejoso. Eu não o conheço. Nem frequento as suas paragens. Nem pertenço aos seus aposentos sagrados. O cónego está de saída e dizem que usa cilícios por baixo da batina para se mortificar. Olha-se para ele e diz-se logo:

- Bem se vê que é lavrador da morte.

Consta que fala dela em cada sermão. Deve ser uma coisa aborrecida e tétrica. Mestre alfaiate, do fundo das escadas, ainda me acena:

- Vai um copo?

- Nicles – digo eu.

E apresso-me todo importante.


Coimbra, 1979

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