sábado, 20 de março de 2010

A MORTE LENTA - Memórias dum sobrevivente de Buchenwald

Nem sabia da existência deste livro. A Morte Lenta. Um exemplar da primeira edição veio-me parar às mãos antes de o mesmo ter tido um destino fatal - o contentor do lixo - e que uma instituição se preparava para "executar".

O seu autor, Émile Henry, sobrevivente de Buchenwald, nasceu em Lourenço Marques (Maputo) e residiu vários anos em Portugal. Foi preso e internado cerca de dois anos, pelos nazis, no campo de concentração de Buchenwald. Ele tinha pouco mais de vinte anos quando ali foi internado, acabando por fazer parte do contingente que viu o campo ser libertado, em 11 de Abril de 1945.
Eivado de um intenso realismo, Émile Henry deixou-nos um relato que escreveu poucos meses depois do final da Segunda Guerra Mundial e sobre o qual escreveu, na Cidade do Porto, em 8 de Setembro de 1945, as linhas que se seguem:

"Depois de quatro anos de ausência voltei a Portugal. Se se tratasse de uma simples viagem para meu recreio, seria supérfluo escrever um livro, mas é que dêstes quatro anos, perto de dois vivi-os num dos maiores campos alemães de concentração: o de Buchenwald.
"Não se trata nêste livro de descrever as diferenças que podiam existir entre os diversos campos. Tem-se tanto frio a trinta graus de temperatura como a vinte e o mesmo acontece com o sofrimento que, a partir de um certo limite, já não é mensurável. Por isso, quer se fale de Buchenwald, Belsen, Dachau, Sachshausen, Auschwitz ou quaisquer outros, trata-se apenas dum mesmo e único crime contra a humanidade.
"Muitos amigos me têm pedido que escreva o que vi e vivi, e se o faço agora alguns meses depois da minha libertação, é objectivamente, limitando-me apenas a descrever os factos sem os comentar, ou fazendo-o o menos possível, pedindo ao leitor que não veja nestas linhas a minha história pessoal mas a de milhares e milhares de crianças, de jovens, de homens feitos, de velhos e de mulheres, pessoas de tôdas as condições sociais, de tôdas as religiões e de todas as raças, que suportaram, pelas suas ideias, sofrimentos que a história moderna nunca registou.

Pôrto, 8-9-45"
.

Domingos Monteiro escreveu o prefácio, em Novembro de 1945. Émile Henry fez questão em publicar o livro em Portugal antes que o mesmo fosse editado noutros países. Em 1946, a Editorial Ibérica cumpriu esse desejo e explicou aos seus leitores que o livro, apesar de ter sido escrito em francês, estava sendo "publicado em Portugal antes de o ser em qualquer outro país e foi, em parte, traduzido e emendado pelo seu autor, o que lhe confere de certa maneira, a qualidade do original português".

Mas livros para o lixo, não. Quem não os quiser, pode oferecê-los a outras pessoas e entidades. Ao menos, os livros hão-de circular. É essa a sua função: serem lidos e que possam passar de mão em mão. Mas lixo, não.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Que livro gostaria de ter escrito? Neverending Story. E gostaria ter uma loja como a do alfarrabista. Quem viu o filme, há alguns anos, ou quem leu o livro, sentirá o fascínio por aqueles seres envolvidos na luta do bem contra o mal e no eterno argumento de uns serem os bons e outros os maus. Os bons ganham quase sempre no final. Os maus são sempre os maus da fita. Os seres alados, a tartaruga gigante, de memórias espantosas e pachorrentas, os ventos cinzentos do mal, os obstáculos a transpor, as esperanças reduzidas a pó no momento em que tudo parece tranquilo, são ingredientes valorativos de qualquer narrativa. Usam-se de todas as formas e as possibilidades são infinitas. Acho que reside aí o génio da criatividade. Mas o valor maior de Neverending Story é a esperança. Gosto dessa constante e por isso o livro me parece tão belo e antiderrotista.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Releituras

OS PESCADORES, de Raul Brandão. Uma releitura permanente. Algumas vilas piscatórias aí pinceladas, alguns usos e costumes que marcaram uma época, terão mudado. As técnicas de abordar o mar serão hoje todavia melhores do naquela época de 1920-1922 quando Raul Brandão escreveu Os Pescadores. Mas o respeito pelo mar, o temor, a dor que muitas vezes causou são intemporais.
Quando olho o mar, quando vejo uma mulher vestida de negro junto do mar, num bairro de pescadores, refugio-me, na primeira oportunidade, nas páginas de Raul Brandão escritas como um verdadeiro diário de bordo e com a expressão de um quadro povoado da poalha e maresia. Não é saudade nem nostalgia de qualquer espécie. Impossível ter saudade de um tempo que não se viveu. Talvez tivesse gostado de viver nesses dias relatados por Raul Brandão. Não sei. A verdade é que leio e releio páginas ao acaso e aprendo muito sobre o meu país. Está lá a alma do meu país. Estão os silêncios e regozijos, os risos e o pranto e sobretudo está um povo de lavradores transformado em homens do mar por sobrevivência pura.
Os Pescadores, de Raul Brandão, Editorial Estúdios Cor ( já não existe, é claro), Junho de 1967.

sexta-feira, 12 de março de 2010

DA GUERRA

Por Timor

Lao Tsé disse: "Onde os exércitos aquartelaram, só há espinhos
e erva seca
Às grandes batalhas seguem-se anos de fome"

Neruda disse: " Paz no Vietnam! Olha o que deixaste
dentro dessa paz de sepultura
cheia de mortos por ti calcinados!"

E continuaria a citar um rol de poesia
para esclarecer a brutal forma de lidar na terra
com o confronto, o preconceito e a quesília
dos que, desentendidos, encontram só na guerra
a solução vitoriosa de seus orgulhos

Abram os olhos e vejam os monturos
das caveiras esbranquiçadas por Pol Pot
os restos das carnes chacinadas no Ruanda
os milhares de fugitivos a monte
as cabeças perdidas de Luanda
a morte não dormindo, tendo ao vento as suas cãs
e soprando seu letal veneno sobre a terra dos Balcãs

Abram os olhos e vejam os irmãos desavindos
da irlândica europa com missas aos domingos
púlpitos de palavras e fervor
contrastando com as palmeiras de Timor
onde se acoitam as hienas que fratricidam a esperança.

(Este poema foi escrito em finais de 1999 e editado em 2000, sendo uma homenagem a Timor e aos milhares de timorenses que deram a sua vida pela liberdade e independência).

segunda-feira, 8 de março de 2010

A minha prima Raquel tem os cabelos negros, de azeviche, ondulados e se tivesse nascido em Jerusalem ou Casablanca seria a mesma coisa. Os cabelos continuariam a ser ondulados e de azeviche. Mas nasceu num cantinho muito bonito de Portugal e, em trinta e seis anos de vida tornou-se professora de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra, com doutoramento pela Universidade de Kent, múltiplas e variadas conferências internacionais, especialista em assuntos de segurança nas antigas repúblicas soviéticas, professora de olhos suaves, mãe da Matilde e leitora voraz.
Um dia, em Nova Iorque, o frio rompia-nos os ossos, mas lá fomos caminhar na ponte de Brooklin porque, de repente, ela quis sentir-se novaiorquina e a única maneira de lhe dar essa sensação, foi exatamente assim: caminharmos eu, a Rita e a Raquel na ponte mais emblemática da Cidade, acossados pelo frio de Fevereiro e perdidos na bruma de uma tarde meio cinzenta, meio acastanhada, com downtown suando pelos poros das avenidas e pelas grelhas de ventilação do subway.
A Raquel, como todas as mulheres do mundo, tem hoje o seu dia. Um único dia apenas dedicado à mulher. Um dia internacional que, não fosse a tragédia da rotina, iríamos pensar que só este dia pode ser dedicado à mulher. Mas não. A Raquel, como todas as mulheres do mundo, fazem parte do mundo que está aí, à nossa espera.

domingo, 7 de março de 2010

Tenho andado, desde há dias, à espera de sentar-me confortavelmente para escrever as linhas que seguem.
E hoje quero assinalar um pequeno restaurante, entre o Largo da Armada e a Rua das Necessidades, um restaurante acolhedor e pequeno, onde quase todos os olhares se conhecem ou são conhecidos indirectamente. Um restaurante de cozinha mediterrânica, vá lá, não pensem em cozinha grega, é cozinha mediterrânica portuguesa, de sabores portugueses.
O AL CÂNTARO, assim é o nome, assume-se, desde o início como um lugar na tradição dos antigos botequins. Lá dentro, fica-se com a sensação de bem estar, e de bem estar num lugar que é um pequeno mundo entre um pub e um pequeno e típico restaurante, sem nos sentirmos coagidos pelo peso da macacada decorativa que muitas vezes somos obrigados a digerir como acompanhamento fatal de uma refeição. Uma cartografia em pedra, madeira e ladrilho, garantindo-nos familiaridade e conforto.
As paredes exibem uma galeria de retratos que povoam o nosso imaginário cultural.
Fica na Rampa das Necessidades, número 6 e podem descobri-lo no facebook, através de correio electrónico alcantarobar@gmail.com e numa página web: www.alcantaro.pt
Também podem lá chegar através de reservas feitas pelo telefone nº214067060.
Vou lá, quando o tempo mo permite, à hora de almoço. A variedade do menu é pequena, mas quanto baste para nos sentirmos como se estivéssemos tomando uma refeição em casa. A ementa inclui sopa, prato de carne ou peixe, pão, queijo azeitonas, vinho, sumo ou água, sobremesa e café, tudo por um preço irrisório.
E escrevo estas linhas porque não tenho quaisquer interesses comerciais ou familiares no negócio e porque é um lugar onde me sinto português, o que nem sempre acontece noutros sítios e locais onde a opressão do número e de "tentar agarrar" mais um cliente virou sintoma da destreza mecânica e tecnológica no mundo de hoje.
No Al Cântaro, o mundo está à nossa espera.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Autista,quem...Eu? , da Ana Martins

"O filme em que o Xico mais se fixa (porque nele se vê um brinquedo que ele ainda hoje adora) durante os vinte e tal minutos de fita, é de um silêncio tal, que se vai tornando aflitivo, acabando mesmo por ser opressor!
É verdade. O miúdo gralha, que eu conheço, ainda não falava com aquela idade, e também, é muito esquisito, porque o miúdo roda uma tampa de um balde até esta parar, repetindo o gesto obsessivamente num rodopio tornado infindável.
É mesmo estranho...
Noutras filmagens lambia vidros, mordiscava mobílias ou desenrolava o fio dental ou um rolo de papel higiénico até ao fim. Outros miúdos podem fazer o mesmo, está certo, mas parariam com o disparate ao sentirem-se observados por um adulto – com câmara de filmar ou sem ela, não é? Errado! Com o Xico era diferente: era o olhar obstinado dele que tanto me incomoda nestes filmes antigos: Aquela expressão vazia como se nada neste mundo o pudesse interessar, e de repente, uma fascinação parva por qualquer coisa cujo movimento fosse circulatório, ignorando uma brincadeira normal que um adulto estivesse a tentar ter com ele."


Trata-se de um excerto do livro Autista, quem... Eu?, da Ana Martins. Um livro, disse-me a autora, que já andou por aí nas livrarias e agora não anda. É injusto que isso aconteça. Estamos todos a ser privados de uma estória que é, afinal, uma história real e que tive o privilégio de ler graças à generosidade da autora. Uma estória que é uma lição de vida. Uma estória de ternura e paisagens interiores no relacionamento entre duas pessoas de rara intensiddade vivencial: mãe e filho, filho autista, quiçás mais atento a detalhes do mundo de que não nos damos conta. Nunca tive essa experiência na minha vida. Nem sei como iria lidar com uma situação semelhante. Obrigado, Ana, por me ter ajudado a perceber uma realidade que, por vezes, surge nos filmes e tem tanto de devastadora como de humana. Obrigado por isso.
Infelizmente, não saberei dizer onde é possível ainda adquirir um exemplar do livro.