terça-feira, 3 de agosto de 2010

UMA QUINHENTA

(publicado pela primeira vez nos Cadernos de Literatura da Universidade de Coimbra, Nº 3, 1979)

Velha Maria não reparou em mim quando eu entrei. Mas ao descobrir-m viu nos meus olhos os seus olhos. Espantada de uma vida inteira, não resistiu a chorar nas minhas mãos. Como elas ficaram molhadas, meu deus. E que frio eu senti no meu corpo de ter a velha negra por um fia de cabelo preso no meu peito. Pranto de saudade. Não. Pranto de fim de vida. De canseira para me ver crescer gente. Sentada num tronco, à espera de morrer. Como um embondeiro de mil anos, seco e gretado, semn servir para nada. Veias que já não palpitam, menino. Com o coração secular atrapalhado no coração da velha. Como Monomotapa desmembrado. Ou como a semente do piri-piri disseminada no rosto dos monhés.
E aí, eu insistindo em dizer que o Zambeze continuava a nascer na Serra da Estrela. Menino teimoso. Sem entendimento das coisas. Menino mimado a querer explicar Velha Maria pela razão que nunca enexergou. E Velha Maria a querer dizer que dizia aquilo de um aperto que tinha lá no fundo da casa de madeira e zinco. Um catre, uma mesa e a luz indecisa do petromax alumiando o seu mundo mais próximo. Chorava por tudo isto. Pelas estórias do Velho pai, cocuana de todo, sentado ao lado dela, voltado para mim e admirado de eu estar admirado. E por Deolinda, a de doces coxas e cheia do saltitar encabritado da suas tetas.
Escuta, então. O que resta de mim é carcaça sem força. E apalpava umas coisas que remotamente tinham sido o lugar dos seus seios bojudos e generosos. Nem óleo de coco me salva, menino.Mas eu nasci garota no meio do mato e aprendi muita vida. Eu vi sua mãe parir teu corpo. Você era uma ninharia. Uma quinhenta de gente. E Deolinda já era moça nesse tempo. Já tinha feitiço naquele corpito que fez matar a cabeça do moleque da casa do monhé. Você compreende, menino? Claro. Você não compreende. Pois se você sempre fechou os olhos à claridade das bombas. E eu calado.
Velha Maria a contar como a palavra saía da sua boca. Velha Maria a contar como fora que as crianças haviam subido até à altura das suas tetas e como lhe aparecera na testa o nervo com que expelia a fúria. Velha Maria a contar como fora que uma multidão endiabrada lhe pisara os flancos por debaixo das saias e se tornara branda, nesse instante. Velha Maria a contar como fora que o monhé capara o moleque por causa da Deolinda. Velha Maria a contar como fora que o moleque, danado e doido, se atirara ao rio apanhado de jacarés. Velha Maria a contar como fora ainda que o peito de minha mãe secara e como dera o seu à minha fome. Tetas que davam para uma geração de negros, menino.
E o Zambeze a crescer, a crescer. E a Chipangara muito longe do Zambeze. E eu a pensar como era bonito o Mar da Palha, cheio de barcos e de gaivotas. Os meus pés encharcados de Lisboa. Os meus pés de fado. A recordar as amarras feitas dos cabelos das rapaigas que estremeciam com o fedor a pólvora, envolvendo as cartas dos seus amores. E eu a pensar que Deolinda estava em Lisboa. Bolas, menino. Velha Maria a morrer numa breve tarde tropical e incitando-me.
Fala, menino. Tem coragem, menino. Ah. Mas você não tem coragem. Você é um medricas. Você nunca gostou de Deolinda. Você só queria as tetas dela. As suas ancas. As suas coxas. Você é um alarve. Palavra de branco, menino. ALARVE. E chorava. Os meus cabelos quietos. A minha vontade de dizer a Velha Maria que tinha vindo buscar Deolinda. A minha vontade de dizer a Velha Maria que não morresse.
Eu dobrei você no meu colo e disse sempre: meu menino. Mas depois, sua mãe mandou-o embora para Lisboa. Você não sei o que aprendeu em Lisboa. Mas você nunca mais foi desta terra. Você falava de coisas esquisitas. Você falava de rios que Velho pai não sabia. Como eiu toinha pena de você, porque nenhum negro seguia o seu entendimento. Só Deolinda é que achou sempre você como um génio. Ainda lembro quando vocês dois iam para dentro do capim, a fazer aquelas brincadeiras terríveis para agradecer o amor. E a maneira como você deixava a espingarda na estrada. E ainda lembro Velho pai plantando palmeira à borda da casa e você treapado no embondeiro a lavar a cara do suor. Depois, como eu vim para a cidade. Como eu vim queimar meus pés no cimento. Mas conheci muito Velho pai. Um deles, era chofer dos machimbombos. Levava-me com ele não pagava bilhete. Tinha mão larga e com ela passava no meu cú, enquanto guiava. Um dia morreu. Bebia muito.
Velha Maria fazendo um esforço enorme para manter a cabeça levantada. A morte, porém, teimando em baixá-la. Velha Maria torcendo por seu lado.
Não insista, menino. Eu vou morrer daqui a pouco. Eu sei que vou morrer daqui a pouco. Escusa de chorar, menino. Deolinda buscando nos meus olhos o resto das noites em que se me apresentava princesa e nua. Deolinda desafiando-me com seus olhos marejados e, sem consciência, entreabrindo o breve rumor das coxas tatuadas. Como se quisesse dizer que a morte era um puro sexo. E Velho pai tremendo em sinal de protesto contra a morte.
Na rua, uma carrada de negros berrando que Velha Maria se acabava. Tragam sol para ela. E as pálpebras sem obedecerem. Eu, gelado. A pose da estátua. A frieza do raciocínio. Pobre velha. Vai embora, menino. Já te falei. Se queres, leva a Deolinda contigo. Mas já te falei. Deixa-me só, com Velho pai, menino. E eu, especado. Um espantalho.
Pela tarde dentro, o tam-tam dobrado os batuques. Ao lado, a avenida para Matacuane, rasgando as enytranhas desse viveiro de negros. A Chipangara a volatilizar-se por entre a nebline fina e húmida. Esperar apenas o tempo necessário de apanhar o macimbombo e raspar-me. Para a rua dos monhés. Para a rua dos monhés, à procura de chamuças. Entretanto, o cheiro a incenso que me invadia as narinas, brotando das suas lojas e das janelas das suas casas de dois ou três andares, no máximo. O momento propício para esquecer Velha Maria.


Coimbra, 1979

1 comentário:

  1. Olá Francisco,
    Bem interessante esse conto, tem ritmo, tem musicalidade, suavemente nos entra no espírito, claro estou na Beira, Provincia de Sofala onde tu deixaste saudades e daqui acredito: TENS SAUDADES!
    Um abraço
    Augusto, no Maquinino à noite.

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