quarta-feira, 4 de agosto de 2010

UMA ESTÓRIA DE SANDINHO

(publicado na Revista Vértice, Nºs 428-429, Coimbra, 1980)

Sandinho tapou as orelhas com o gorro de lã e a chuva salpicou-lhe as faces de pequenas gotas frias e transparentes. A lama estava enfarinhada com os excrementos das vacas e das mulas e Sandinho perguntava-se a razão por que os animais não tinham tanto frio como os homens.
- "Semos" gente ruim – Sandinho falava com a samarra. Algumas vezes a mão ouviu-o falar assim e disse que ele estava pírulas. Mas não estava, não senhor. E então magicava no motivo que levava as pessoas a andarem todas enroscadas em trapos, por mal do frio, enquanto os bichos, esses, o suportavam sempre da mesma maneira durante anos sucessivos.
- São mais rijos, os bichos – dizia.
Na subida da estrada, Sandinho mirou as janelas novas da casa do povo e sonhou com o progresso. Ainda havia de ver a sua aldeia tornada vila ou cidade e, talvez, capital. No entanto, só desejava que a sua aldeia se tornasse vila.
Luciana, a sua amiga, iria ficar contente por saber que ele sonhava todos os dias com o progresso. Dir-lhe-ia precisamente isso, nessa tarde. Onde é que ele tinha ouvido falar de progresso, a primeira vez? Já vos digo... foi na telefonia. Lembro-me que pediu ao avô para lhe explicar o que significava a palavra progresso. O avô explicou-lhe, mas Sandinho não ficou muito satisfeito com a explicação. Na escola, perguntou ao professor. E o professor disse:
- Isso é muito complicado.
Sandinho percebeu o mesmo e disse que na escola não aprendia nada. Mas um dia, um companheiro fez-lhe a fineza de dizer o que significava a palavra progresso. E disse-lhe assim:
- É fartura de tudo.
O pai do companheiro estava na França e dissera-lhe uma vez que aquilo é que era terra de progresso. «Aldeias que tinham virado cidades, cidades que tinham virado vilas e vilas que haviam virado cités.
- Então o progresso é a nossa aldeia tornada cidade, né?
- É pois – disse o companheiro.
- Eu só queria vila – Sandinho pediu.
- Vila é que é progresso – o companheiro anuiu. O meu pai diz que nas Franças já não há cidades. Só há vilas. E a minha mãe recebeu uma carta dele a dizer que estava na vila de Tours. Lembor. Ele até escreveu assim... (o companheiro desenhou no saibro a palavra francesa ville. Ao mesmo tempo, inchava-se de importancia por saber uma coisa que Sandinho não sabia)... porque cidade – continuou o companheiro a explicar – só há uma. É a cité de Paris, percebeste? E também é capital.
Sandinho riu de contente. Nesse mesmo dia correu a casa de Luciana a contar-lhe a novidade. Aí, ela virou-se para ele e disse:
- Um dia a nossa aldeia também há-de ser vila.
E Sandinho passou então a sonhar todos os dias com o progresso. Hoje desejava dizer isso a Luciana e queria que ela risse com ele. Depois, iriam à fonte, mesmo a chover e no caminho ele treparia a uma macieira para colher maçãs. Haveriam de comê-las juntos. Mas queria ver primeiro a cara de Luciana quando lhe falasse dos seus sonhos com o progresso.
Sandinho passou rentinho ao muro do cemitério. A cal estava a cair e o portão velho, em ferro forjado, tinham-no escancarado completamente, sem fechadura e com muita ferrugem. As gradezinhas das campas também aparentavam um ar desolador. Tristou-se, olhou o céu cinzento carregado, agarrou na palma das mãos as gotas maiores de chuva, benzeu-se numa dedada e disse:
- Paz às alminhas.
Benzeu-se como poderia ter aberto os braços ou levadas as mãos ao peito, à boca e à testa num gesto de lembrança e temeridade. O avô ensinara-lhe que se ele dissesse sempre aquelas palavrinhas ao entrar num cemitério ou ao ver um funeral a passar, alguém haveria de as dizer também por ele no dia em que se finasse.
Luciana não gostava que Sandinho dissesse isso, porque tinha medo de morrer e chamava-lhe lanzudo. Mas ficava séria quando Sandinho pronunciava essas palavras e ela se encontrava perto dele. De modo que enfiou as mãos nos bolsos, depois de ter espreitado para o cemitério, ter dado um pontapé num calhau e ter urinado de encontro a uma sebe. Assobiou muito forte e, daí a nada, o cão bateu-lhe com o rabo nas pernas.
- Afasta – disse.
E os dois lá se foram na direcção da casa da Luciana.
- É como te disse – explicou Sandinho.
- ‘tás doido – Luciana troçou dos sonhos do seu amigo. Fez uma concha da sua mão direita e apalpou o pêlo humedecido do cão. Em casa o pai berrou. Estava zangado.
- Esta gente é burra – Luciana e Sandinho escutaram isto. Sandinho perguntou:
- O teu pai fala sozinho?
- Não – disse Luciana.
Sandinho estava curioso de saber. Luciana adivinhou-lhe o desejo, semicerrou os olhos, pegou-lhe na mão e disse:
- É por causa do correio. O meu pai recebeu uma encomenda de discos sem os ter pedido. E também recebeu uma carta a explicar para que eram os discos.
- Discos? – Sandinho engasgou-se – o que são discos?
- Nunca ouviste falar em discos?
- Não – disse Sandinho.
Luciana explicou-lhe então o que eram discos. Sandinho nunca tinha visto um disco e Luciana foi buscar um e mostrou-lho. Explicou como funcionavam. Tinha de ser num aparelho próprio, chamado gira-discos. Sandinho estava admirado. Aí estava outra coisa que ele também não sabia. E disse:
- Isso é que é progresso!
A voz do pai de Luciana ouviu-se outra vez.
- Discos! Para que quero eu discos sem ter gira-discos... e ainda por cima, mandam-nos com uma carta de palavrinhas tão doces, tão doces, que levam logo uma pessoa à evidênia de dizer que sim.
- O meu pai diz que os vai meter no correio, outra vez – Luciana continuou a explicar – ele está zangado porque não quer aqui essas porcarias...
Luciana e Sandinho pegaram nos cântaros e foram à fonte. Ele tornou a falar-lhe novamente dos seus sonhos com o progresso.
- Eu não acredito nos teus sonhos – disse ela enquanto caminhavam pelo carreiro enlameado. Ti João viu-os e saudou-os.
- Boas tardes, gentinha.
- Boa tarde, Ti João.
Luciana e Sandinho ficaram a ver a água tombar nos cântaros e molharam os dedos, enquanto ela escorria. Riram. O cão abeirou-se de um fiozinho que corria, por entre as pedras frias e musgosas e bebeu. Sandinho disse que ela tinha de acreditar no progresso.
- Acredito nada.
- Tens de crer. Um dia, botaremos avenidas e casas enormes neste lugar... é quando eu for homem. E a gente irá gostar. Havemos de ter lojas para tudo. Doces, brinquedos e não viremos mais buscar água aqui à fonte. Há-de haver água em todas as casas. E há-de haver um jardim em volta desta fonte.
- Quem disse isso?
- Foi o meu avô. Ele é um homem que acredita no progresso.
Sandinho falou com convicção. Trepou a uma macieira.
- Luciana, olha que maçã tão grande!
- É do tamanho do mundo – disse Luciana.
Outro cântaro se encheu. A chuva tombava, desta vez, mais devagarinho e não lhes zurzia tanto as mãos. Mas formara-se um cacimbo muito denso que espevitou as narinas de Sandinho. Como um perdigueiro. Ficaram muito frias. As mãos dele também estavam geladas. Mas tinho coração aos pulos. Quentinho de todo.
- Chuva má – disse.
Luciana olhou para ele e quis saber:
- Tu não gostas da chuva, pois não?
- Não – disse Sandinho.
- A chuva é bonita – disse ela para o contrariar.
- A chuva não nos deixa brincar na rua – disse Sandinho.
- E tu gostas de brincar? – Perguntou Luciana.
- Eu gosto de brincar – disse Sandinho.
- E gostas de brincar comigo?
- Eu só brinco contigo – Sandinho corou.
- E gostas de mim?
Não era isso que Luciana queria perguntar. Sandinho tardou a responder. Manteve-se em cima da macieira, o frio a entrar-lhe pelos olhos e sentiu umas coisas estranhas dentro de si. Coisas que nunca houvera sentido.
- Diz lá – Luciana suplicou.
Mas Sandinho não foi capaz de dizer. E Luciana acabava de descobrir que tinha confundido o seu amigo e isso encheu-a de orgulho. Pelka primeira vez, pensava que podia dominar um rapazinho da sua idade. Então, repetiu uma frase que tinha ouvido da boca de uma rapariga crescida e que namorava um soldado.
- Os rapazes são uns fracos.
Mas ela disse isso sem saber porquê. Sandinho saltou da macieira, agarrou-a pela blusa, juntou-a ao seu peito e disse:
- Não gosto de ti porque não acreditas nos meus sonhos.
Ambos pousaram os cântaros junto do fogão de lenha. O pai de Luciana olhou para os dois miúdos e gostou deles. Sandinho saiu para o terreiro e a samarra esfriou-lhe levemente as costas, porque estava ensopada. Passou de novo junto do cemitério, espreitou e desatou a correr até casa. Alguém lhe havia dito que, ao anoitecer, se viam as almas penando sobre as campas. Sandinho viu coisa nenhuma. O cão foi com ele.
Estava contente e não estava pelo que tinha dito a Luciana. Lembrou-se de uma coisa que o avô lhe dissera: “As raparigas enfraquecem as pernas dos rapazes”. E Sandinho pensou que aquilo poderia ter sido o primeiro sinal para tentarem enfraquecer as suas. Por isso correu daquele jeito até casa, a fim de se certificar se elas já estavam fracas.
A mãe disse para ele fechar a porta, que se fazia noite. Sandinho fechou. O cão latiu à entrada e ele deixou-o entrar. Mas a mãe ordenou que ele pusesse o cão na rua.
Como de costume, jantou cedo. Durante o jantar pensou no progresso. Haveria de fazer coisas maravilhosas quando tivesse o progresso nas mãos. Haveria de mudar muita coisa com o progresso. O pai estranhou-lhe o silêncio. Não quis, porém, perguntar nada ao filho. Foi o filho quem perguntou:
- Pai, o que é progresso?
O pai esfregou os calos das mãos uns nos outros, deu uns estalidos nas articulações dos dedos, pôs os cotovelos em cima da mesa e baixaindo a cabeça, como se quisesse puxar qualquer coisa, disse:
- O progresso é quando o dinheiro já não pode comprar a força de um homem.
Parou. Depois disse:
- Deixa-te de coisas esquisitas e vai-te deitar porque amanhã tens de vir comigo apanhar um resto de batatas.
Sandinho ainda se manteve acordado durante muito tempo, a pensar no que lhe dissera o pai. Desejou fortemente tê-lo junto de si, porque podia ensinar-lhe muitas coisas.
E quando adormeceu, em vez de sonhar com cidades, aviões, comboio eléctricos, máquinas gigantescas e arranha-céus, Sandinho sonhou com Luciana.


Francisco Duarte Azevedo

Sem comentários:

Enviar um comentário