terça-feira, 18 de maio de 2010

Canto prantado para Rui Knopfli na Ilha de Moçambique

Em Julho de 1993, fui, pela primeira vez, à Ilha de Moçambique. O Navio Escola "SAGRES" também. Senti um estremecimento interior que me deu a sensação de haver por ali passado algum dia em algum tempo. Dia e tempo indefinidos e imprecisos. Levava comigo A Ilha de Próspero, de Rui Knoplfi. Já tinha lido e relido Camões, já tinha descoberto poetas e fotógrafos moçambicanos e histórias dispersas, tão disseminadas como os sabores da Ilha, tão vivas e tão ricas que me paralisaram os sentidos e eu fui tomado por uma seiva de tranquilidade e nostalgia. O imã da mesquita ofereceu-me um cofió e uma cabaia. Mas percorrer a Ilha com o livro de Rui Knopfli nas mãos deixou marcas. (Voltarei um destes dias a escrever mais algumas linhas sobre a Ilha).
Por agora, relembro apenas que me encontrei com Rui Knopfli nos derradeiros dias de sua vida. Arrastava os ossos - já era somente uma réstia física de si próprio - mas manteve a tenacidade de manter-se de pé perante uma morte anunciada. Dias antes, efectivamente, eu parti para Sófia e foi nessa cidade que recebi a notícia do seu passamento.
Sucedeu que havia escrevinhado, na Ilha de Moçambique, as primeiras linhas de um poema que não terminei. Isso só aconteceu seis anos depois, quando me senti invadido pela nostalgia da escrita elegante de Knopfli. Depois, inseri-o numa disquete e nunca mais soube onde a guardei. Há dias, abri uma caixa com papéis e bugigangas e a disquete estava lá. E assim edito, pela primeira vez O Canto Prantado para Rui Knopfli na Ilha de Moçambique, em homenagem ao poeta e a um ser humano demasiado humano.

Canto prantado para Rui Knopfli na Ilha de Moçambique

Em memória do poeta falecido em Dezembro de 1997

No escuro silêncio das pedras de coral
sei de palavras e dotes, versículos e motes,
simulacros e silêncios de deuses ignorados,
gramáticas da fala, rostos voltados
sobre o mar de lajes onde os mortos gritam.

Vejo-te sentado no cais já desfeito,
sorvendo o sol em teu peito aberto.
A amurada no mar deserto
embala uma canção antiga
um choro de volteio
a trajectória indefinida
de um tiro de canhão
solto da garra das ameias
para o oceano, a imensidão.

Mal meus compassados passos
pisaram o chão sagrado,
escutei a voz fatal, o sentimento da poesia
e vi a lua de Meca sobre as pedras brancas
desta clara ilha, lidei com tua escrita,
linha após linha, verso após verso,
épica fantasia da modernidade
como se fosses Camões,Luis Vaz da nossa era,
e de teus lábios partisse
a palavra, o trovão e a quimera
do espalhado luso sémen no pó da fatalidade,
no destino contrariado, da ilusão do sangue
nas veias rebentado com poalhas de miragem.

Não tenho voz para te contar como em mil nove
e noventa e três uma barca branca de mil cores
se fez ao mar,ao largo mar que desfez mil amores
de marinheiros e seus segredos,
a branca barca arribada à baía ondulante
presa ao fundo das águas com seu ferro crepitante
em frente de negro corpo da mulher atraiçoada,
tornada pedra, negra pedra escarpada
onde fortaleza se ergueu com palácio e capela
sobre caniço e mesquita e cemitério de breu.

Vi de larga varanda caída sobre as águas
a branca vela enfunada da barca branca parada.
Recolhidas brancas linhas do velame no veleiro
restaram magros mastros, com o cordame preso
ao perfume dos frutos, em oferenda de gestos
e salamaleques diversos no cesto de mágoas carpidas.

O mar chão, as avermelhadas capulanas das mulheres
adornadas de msiro, cantaram a tua chegada.
Eu voltei-me para ti, poeta,peguei em teus versos
e iniciei meus terços na ilha de Próspero.

Incipiente fuga ao passado, voltas que a pedra deu
de mão em mão na mão dos homens cor de breu,
vi D. Jorge Mariz aqui chegar à fala contigo
e por artes, engenho e desespero
lembrar aos vindouros ante chão sagrado
que ali, sepultado, em vez do seu,poderia
estar corpo mirrado de algum gentio,
“ímpia a delida escrita que mal aflora a lápide”
para em tua pena se tornar pesado
o memorial dos mortos nossos do passado,
a glória naufragada, o suado corpo tombado
de encontro às rochas que os nativos ali exumaram
com vivas tochas do fogo divinizado.

Na outra ponta da ilha vi a docotomia
da vida, da história e do cansaço,
outras gentes desvendei, distantes e cúmplices
no outro lado do mar, devotadas ao cangaço,
partidas em pedaços de memórias nordestinas,
ressaibos das velhas lutas inglórias e intestinas
de xeicados, prazeiros e aventureiros
amassados na argamassa de pedras e macúti.

Poeta, já nada é como dantes. As pedras das casas
que amaste tombaram e com elas a caliça
dos sobrados senhoris. Já não se ouve voz
de comando nem som de botas viris
desafiando o desmando de sombras
esfareladas e patéticas.


Ilha de Moçambique, Julho de 1993 - Oeiras, Janeiro de 1999

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