domingo, 29 de agosto de 2010

RELEITURAS

Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. A primeira vez que o li, foi em 1973, 1ª edição portuguesa, da Europa-América. Em Moçambique. Na Beira. Usando o mesmo exemplar, outras pessoas o leram.

LIVROS

Enquanto Salazar dormia... , de Domingos Amaral. Estou a ler a 17ª edição e 1ª edição BIS/LEYA, esta quase de bolso, facilmente transportável, facilmente manuseável. É um romance divertido, que fala de coisas sérias, da guerra, do amor, de espionagem (a parte misteriorsa) com uma abordagem fantástica: toda a gente percebe. E acima de tudo é um retrato de Lisboa nos anos de brasa, de 40, quando ser-se espião nas suas ruas tinha o valor acrescido da aventura e do confronto entre dois mundos em guerra: o nazismo dantesco da tortura, da morte, do racismo, dos campos de concentração e da conceitualização de uma raça superior (qual superior qual carapuça) e o mundo das sociedades abertas e livres. No meio disto, o pequeno mundo das meias tintas, das meias verdades, do boatério, e do nim (neutros para dizer nem não nem sim; neutros e colaborantes). Descubram,entretanto, Jack Gil Mascarenhas, o espião luso-americano, filho de mãe portuguesa, como dizia uma das suas amantes, Mary.

LIVROS

Perguntavam-me, há dias, qual o sentido de referir a releitura de um autor que já se leu há muito tempo, quando existem muitos outros (dezenas, centenas, milhares, talvez centenas de milhares e milhões em todo o mundo) que ainda não foram lidos e provavelmente nunca serão?
O sentido é o seguinte: a vida é uma aprendizagem permanente. Existem aqueles que já sabem tudo, dão bitates, têm a verdade nas entranhas e naturalmente não fazem mais parte do grupo que continua a aprender. E há os que vão beber permanentemente às suas matrizes de referência. Eu não me importo de reler um autor as vezes que me apetecer. Gosto de o fazer e ponto final. Como não sou crítico literário, comentador desportivo, analista político, líder religioso, membro partidário, fico-me pelas leituras que gosto de fazer e sugerir.
Assim, sugiro que todos leiam o que lhes apetecer sem recurso a grandes teorizações. A vida ensina-nos o resto. E alguma vez, em algum lugar, descobriremos a beleza da literatura, a paixão da escrita e a razão pela qual entramos numa livraria e escolhemos um livro. As sugestões estão obviamente em toda a parte. Acabo também por não ser alheio a elas. Mas francamente, não é por aquilo que um crítico diga ou pense que me vou orientar.
Enfim, toca a ler o que quiserem e quando quiserem e como puderem. Porque um autor sugere sempre outros autores e assim sucessivamente. É preciso apenas ter o espírito aberto à necessidade de aprender permanentemente.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

MÚSICA

Já nem me lembrava de Manu Chau. CLANDESTINO. Sigam as letras de cada canção.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

LIVROS

2666, de Roberto Bolaño. Toca a ler esse livro quem ainda não leu. Descobri Bolaño em Caracas, em 2002. Os Detetives Selvagens, (Prémio Rómulo Gallegos, o mais alto galardão atribuido a um escritor na Venezuela) surpreendeu-me. Em 2009, nos Estados Unidos, deparei-me com 2666. Aguardei a edição portuguesa (pela Quetzal)para o adquirir. Gosto de volumes grandes. Gosto de muitas páginas. Gosto de boas estórias. Quem não gosta de boas estórias? Só temos de agradecer ao Francisco José Viegas a oportunidade que deu aos leitores em língua portuguesa de partilharem uma obra talvez incómoda para muitos, mas excepcional. Precisamos de excepções e de continuar a ter referências excepcionais na literatura mundial. E que viva Chile!

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

UMA ESTÓRIA DE SANDINHO

(publicado na Revista Vértice, Nºs 428-429, Coimbra, 1980)

Sandinho tapou as orelhas com o gorro de lã e a chuva salpicou-lhe as faces de pequenas gotas frias e transparentes. A lama estava enfarinhada com os excrementos das vacas e das mulas e Sandinho perguntava-se a razão por que os animais não tinham tanto frio como os homens.
- "Semos" gente ruim – Sandinho falava com a samarra. Algumas vezes a mão ouviu-o falar assim e disse que ele estava pírulas. Mas não estava, não senhor. E então magicava no motivo que levava as pessoas a andarem todas enroscadas em trapos, por mal do frio, enquanto os bichos, esses, o suportavam sempre da mesma maneira durante anos sucessivos.
- São mais rijos, os bichos – dizia.
Na subida da estrada, Sandinho mirou as janelas novas da casa do povo e sonhou com o progresso. Ainda havia de ver a sua aldeia tornada vila ou cidade e, talvez, capital. No entanto, só desejava que a sua aldeia se tornasse vila.
Luciana, a sua amiga, iria ficar contente por saber que ele sonhava todos os dias com o progresso. Dir-lhe-ia precisamente isso, nessa tarde. Onde é que ele tinha ouvido falar de progresso, a primeira vez? Já vos digo... foi na telefonia. Lembro-me que pediu ao avô para lhe explicar o que significava a palavra progresso. O avô explicou-lhe, mas Sandinho não ficou muito satisfeito com a explicação. Na escola, perguntou ao professor. E o professor disse:
- Isso é muito complicado.
Sandinho percebeu o mesmo e disse que na escola não aprendia nada. Mas um dia, um companheiro fez-lhe a fineza de dizer o que significava a palavra progresso. E disse-lhe assim:
- É fartura de tudo.
O pai do companheiro estava na França e dissera-lhe uma vez que aquilo é que era terra de progresso. «Aldeias que tinham virado cidades, cidades que tinham virado vilas e vilas que haviam virado cités.
- Então o progresso é a nossa aldeia tornada cidade, né?
- É pois – disse o companheiro.
- Eu só queria vila – Sandinho pediu.
- Vila é que é progresso – o companheiro anuiu. O meu pai diz que nas Franças já não há cidades. Só há vilas. E a minha mãe recebeu uma carta dele a dizer que estava na vila de Tours. Lembor. Ele até escreveu assim... (o companheiro desenhou no saibro a palavra francesa ville. Ao mesmo tempo, inchava-se de importancia por saber uma coisa que Sandinho não sabia)... porque cidade – continuou o companheiro a explicar – só há uma. É a cité de Paris, percebeste? E também é capital.
Sandinho riu de contente. Nesse mesmo dia correu a casa de Luciana a contar-lhe a novidade. Aí, ela virou-se para ele e disse:
- Um dia a nossa aldeia também há-de ser vila.
E Sandinho passou então a sonhar todos os dias com o progresso. Hoje desejava dizer isso a Luciana e queria que ela risse com ele. Depois, iriam à fonte, mesmo a chover e no caminho ele treparia a uma macieira para colher maçãs. Haveriam de comê-las juntos. Mas queria ver primeiro a cara de Luciana quando lhe falasse dos seus sonhos com o progresso.
Sandinho passou rentinho ao muro do cemitério. A cal estava a cair e o portão velho, em ferro forjado, tinham-no escancarado completamente, sem fechadura e com muita ferrugem. As gradezinhas das campas também aparentavam um ar desolador. Tristou-se, olhou o céu cinzento carregado, agarrou na palma das mãos as gotas maiores de chuva, benzeu-se numa dedada e disse:
- Paz às alminhas.
Benzeu-se como poderia ter aberto os braços ou levadas as mãos ao peito, à boca e à testa num gesto de lembrança e temeridade. O avô ensinara-lhe que se ele dissesse sempre aquelas palavrinhas ao entrar num cemitério ou ao ver um funeral a passar, alguém haveria de as dizer também por ele no dia em que se finasse.
Luciana não gostava que Sandinho dissesse isso, porque tinha medo de morrer e chamava-lhe lanzudo. Mas ficava séria quando Sandinho pronunciava essas palavras e ela se encontrava perto dele. De modo que enfiou as mãos nos bolsos, depois de ter espreitado para o cemitério, ter dado um pontapé num calhau e ter urinado de encontro a uma sebe. Assobiou muito forte e, daí a nada, o cão bateu-lhe com o rabo nas pernas.
- Afasta – disse.
E os dois lá se foram na direcção da casa da Luciana.
- É como te disse – explicou Sandinho.
- ‘tás doido – Luciana troçou dos sonhos do seu amigo. Fez uma concha da sua mão direita e apalpou o pêlo humedecido do cão. Em casa o pai berrou. Estava zangado.
- Esta gente é burra – Luciana e Sandinho escutaram isto. Sandinho perguntou:
- O teu pai fala sozinho?
- Não – disse Luciana.
Sandinho estava curioso de saber. Luciana adivinhou-lhe o desejo, semicerrou os olhos, pegou-lhe na mão e disse:
- É por causa do correio. O meu pai recebeu uma encomenda de discos sem os ter pedido. E também recebeu uma carta a explicar para que eram os discos.
- Discos? – Sandinho engasgou-se – o que são discos?
- Nunca ouviste falar em discos?
- Não – disse Sandinho.
Luciana explicou-lhe então o que eram discos. Sandinho nunca tinha visto um disco e Luciana foi buscar um e mostrou-lho. Explicou como funcionavam. Tinha de ser num aparelho próprio, chamado gira-discos. Sandinho estava admirado. Aí estava outra coisa que ele também não sabia. E disse:
- Isso é que é progresso!
A voz do pai de Luciana ouviu-se outra vez.
- Discos! Para que quero eu discos sem ter gira-discos... e ainda por cima, mandam-nos com uma carta de palavrinhas tão doces, tão doces, que levam logo uma pessoa à evidênia de dizer que sim.
- O meu pai diz que os vai meter no correio, outra vez – Luciana continuou a explicar – ele está zangado porque não quer aqui essas porcarias...
Luciana e Sandinho pegaram nos cântaros e foram à fonte. Ele tornou a falar-lhe novamente dos seus sonhos com o progresso.
- Eu não acredito nos teus sonhos – disse ela enquanto caminhavam pelo carreiro enlameado. Ti João viu-os e saudou-os.
- Boas tardes, gentinha.
- Boa tarde, Ti João.
Luciana e Sandinho ficaram a ver a água tombar nos cântaros e molharam os dedos, enquanto ela escorria. Riram. O cão abeirou-se de um fiozinho que corria, por entre as pedras frias e musgosas e bebeu. Sandinho disse que ela tinha de acreditar no progresso.
- Acredito nada.
- Tens de crer. Um dia, botaremos avenidas e casas enormes neste lugar... é quando eu for homem. E a gente irá gostar. Havemos de ter lojas para tudo. Doces, brinquedos e não viremos mais buscar água aqui à fonte. Há-de haver água em todas as casas. E há-de haver um jardim em volta desta fonte.
- Quem disse isso?
- Foi o meu avô. Ele é um homem que acredita no progresso.
Sandinho falou com convicção. Trepou a uma macieira.
- Luciana, olha que maçã tão grande!
- É do tamanho do mundo – disse Luciana.
Outro cântaro se encheu. A chuva tombava, desta vez, mais devagarinho e não lhes zurzia tanto as mãos. Mas formara-se um cacimbo muito denso que espevitou as narinas de Sandinho. Como um perdigueiro. Ficaram muito frias. As mãos dele também estavam geladas. Mas tinho coração aos pulos. Quentinho de todo.
- Chuva má – disse.
Luciana olhou para ele e quis saber:
- Tu não gostas da chuva, pois não?
- Não – disse Sandinho.
- A chuva é bonita – disse ela para o contrariar.
- A chuva não nos deixa brincar na rua – disse Sandinho.
- E tu gostas de brincar? – Perguntou Luciana.
- Eu gosto de brincar – disse Sandinho.
- E gostas de brincar comigo?
- Eu só brinco contigo – Sandinho corou.
- E gostas de mim?
Não era isso que Luciana queria perguntar. Sandinho tardou a responder. Manteve-se em cima da macieira, o frio a entrar-lhe pelos olhos e sentiu umas coisas estranhas dentro de si. Coisas que nunca houvera sentido.
- Diz lá – Luciana suplicou.
Mas Sandinho não foi capaz de dizer. E Luciana acabava de descobrir que tinha confundido o seu amigo e isso encheu-a de orgulho. Pelka primeira vez, pensava que podia dominar um rapazinho da sua idade. Então, repetiu uma frase que tinha ouvido da boca de uma rapariga crescida e que namorava um soldado.
- Os rapazes são uns fracos.
Mas ela disse isso sem saber porquê. Sandinho saltou da macieira, agarrou-a pela blusa, juntou-a ao seu peito e disse:
- Não gosto de ti porque não acreditas nos meus sonhos.
Ambos pousaram os cântaros junto do fogão de lenha. O pai de Luciana olhou para os dois miúdos e gostou deles. Sandinho saiu para o terreiro e a samarra esfriou-lhe levemente as costas, porque estava ensopada. Passou de novo junto do cemitério, espreitou e desatou a correr até casa. Alguém lhe havia dito que, ao anoitecer, se viam as almas penando sobre as campas. Sandinho viu coisa nenhuma. O cão foi com ele.
Estava contente e não estava pelo que tinha dito a Luciana. Lembrou-se de uma coisa que o avô lhe dissera: “As raparigas enfraquecem as pernas dos rapazes”. E Sandinho pensou que aquilo poderia ter sido o primeiro sinal para tentarem enfraquecer as suas. Por isso correu daquele jeito até casa, a fim de se certificar se elas já estavam fracas.
A mãe disse para ele fechar a porta, que se fazia noite. Sandinho fechou. O cão latiu à entrada e ele deixou-o entrar. Mas a mãe ordenou que ele pusesse o cão na rua.
Como de costume, jantou cedo. Durante o jantar pensou no progresso. Haveria de fazer coisas maravilhosas quando tivesse o progresso nas mãos. Haveria de mudar muita coisa com o progresso. O pai estranhou-lhe o silêncio. Não quis, porém, perguntar nada ao filho. Foi o filho quem perguntou:
- Pai, o que é progresso?
O pai esfregou os calos das mãos uns nos outros, deu uns estalidos nas articulações dos dedos, pôs os cotovelos em cima da mesa e baixaindo a cabeça, como se quisesse puxar qualquer coisa, disse:
- O progresso é quando o dinheiro já não pode comprar a força de um homem.
Parou. Depois disse:
- Deixa-te de coisas esquisitas e vai-te deitar porque amanhã tens de vir comigo apanhar um resto de batatas.
Sandinho ainda se manteve acordado durante muito tempo, a pensar no que lhe dissera o pai. Desejou fortemente tê-lo junto de si, porque podia ensinar-lhe muitas coisas.
E quando adormeceu, em vez de sonhar com cidades, aviões, comboio eléctricos, máquinas gigantescas e arranha-céus, Sandinho sonhou com Luciana.


Francisco Duarte Azevedo

terça-feira, 3 de agosto de 2010

UMA QUINHENTA

(publicado pela primeira vez nos Cadernos de Literatura da Universidade de Coimbra, Nº 3, 1979)

Velha Maria não reparou em mim quando eu entrei. Mas ao descobrir-m viu nos meus olhos os seus olhos. Espantada de uma vida inteira, não resistiu a chorar nas minhas mãos. Como elas ficaram molhadas, meu deus. E que frio eu senti no meu corpo de ter a velha negra por um fia de cabelo preso no meu peito. Pranto de saudade. Não. Pranto de fim de vida. De canseira para me ver crescer gente. Sentada num tronco, à espera de morrer. Como um embondeiro de mil anos, seco e gretado, semn servir para nada. Veias que já não palpitam, menino. Com o coração secular atrapalhado no coração da velha. Como Monomotapa desmembrado. Ou como a semente do piri-piri disseminada no rosto dos monhés.
E aí, eu insistindo em dizer que o Zambeze continuava a nascer na Serra da Estrela. Menino teimoso. Sem entendimento das coisas. Menino mimado a querer explicar Velha Maria pela razão que nunca enexergou. E Velha Maria a querer dizer que dizia aquilo de um aperto que tinha lá no fundo da casa de madeira e zinco. Um catre, uma mesa e a luz indecisa do petromax alumiando o seu mundo mais próximo. Chorava por tudo isto. Pelas estórias do Velho pai, cocuana de todo, sentado ao lado dela, voltado para mim e admirado de eu estar admirado. E por Deolinda, a de doces coxas e cheia do saltitar encabritado da suas tetas.
Escuta, então. O que resta de mim é carcaça sem força. E apalpava umas coisas que remotamente tinham sido o lugar dos seus seios bojudos e generosos. Nem óleo de coco me salva, menino.Mas eu nasci garota no meio do mato e aprendi muita vida. Eu vi sua mãe parir teu corpo. Você era uma ninharia. Uma quinhenta de gente. E Deolinda já era moça nesse tempo. Já tinha feitiço naquele corpito que fez matar a cabeça do moleque da casa do monhé. Você compreende, menino? Claro. Você não compreende. Pois se você sempre fechou os olhos à claridade das bombas. E eu calado.
Velha Maria a contar como a palavra saía da sua boca. Velha Maria a contar como fora que as crianças haviam subido até à altura das suas tetas e como lhe aparecera na testa o nervo com que expelia a fúria. Velha Maria a contar como fora que uma multidão endiabrada lhe pisara os flancos por debaixo das saias e se tornara branda, nesse instante. Velha Maria a contar como fora que o monhé capara o moleque por causa da Deolinda. Velha Maria a contar como fora que o moleque, danado e doido, se atirara ao rio apanhado de jacarés. Velha Maria a contar como fora ainda que o peito de minha mãe secara e como dera o seu à minha fome. Tetas que davam para uma geração de negros, menino.
E o Zambeze a crescer, a crescer. E a Chipangara muito longe do Zambeze. E eu a pensar como era bonito o Mar da Palha, cheio de barcos e de gaivotas. Os meus pés encharcados de Lisboa. Os meus pés de fado. A recordar as amarras feitas dos cabelos das rapaigas que estremeciam com o fedor a pólvora, envolvendo as cartas dos seus amores. E eu a pensar que Deolinda estava em Lisboa. Bolas, menino. Velha Maria a morrer numa breve tarde tropical e incitando-me.
Fala, menino. Tem coragem, menino. Ah. Mas você não tem coragem. Você é um medricas. Você nunca gostou de Deolinda. Você só queria as tetas dela. As suas ancas. As suas coxas. Você é um alarve. Palavra de branco, menino. ALARVE. E chorava. Os meus cabelos quietos. A minha vontade de dizer a Velha Maria que tinha vindo buscar Deolinda. A minha vontade de dizer a Velha Maria que não morresse.
Eu dobrei você no meu colo e disse sempre: meu menino. Mas depois, sua mãe mandou-o embora para Lisboa. Você não sei o que aprendeu em Lisboa. Mas você nunca mais foi desta terra. Você falava de coisas esquisitas. Você falava de rios que Velho pai não sabia. Como eiu toinha pena de você, porque nenhum negro seguia o seu entendimento. Só Deolinda é que achou sempre você como um génio. Ainda lembro quando vocês dois iam para dentro do capim, a fazer aquelas brincadeiras terríveis para agradecer o amor. E a maneira como você deixava a espingarda na estrada. E ainda lembro Velho pai plantando palmeira à borda da casa e você treapado no embondeiro a lavar a cara do suor. Depois, como eu vim para a cidade. Como eu vim queimar meus pés no cimento. Mas conheci muito Velho pai. Um deles, era chofer dos machimbombos. Levava-me com ele não pagava bilhete. Tinha mão larga e com ela passava no meu cú, enquanto guiava. Um dia morreu. Bebia muito.
Velha Maria fazendo um esforço enorme para manter a cabeça levantada. A morte, porém, teimando em baixá-la. Velha Maria torcendo por seu lado.
Não insista, menino. Eu vou morrer daqui a pouco. Eu sei que vou morrer daqui a pouco. Escusa de chorar, menino. Deolinda buscando nos meus olhos o resto das noites em que se me apresentava princesa e nua. Deolinda desafiando-me com seus olhos marejados e, sem consciência, entreabrindo o breve rumor das coxas tatuadas. Como se quisesse dizer que a morte era um puro sexo. E Velho pai tremendo em sinal de protesto contra a morte.
Na rua, uma carrada de negros berrando que Velha Maria se acabava. Tragam sol para ela. E as pálpebras sem obedecerem. Eu, gelado. A pose da estátua. A frieza do raciocínio. Pobre velha. Vai embora, menino. Já te falei. Se queres, leva a Deolinda contigo. Mas já te falei. Deixa-me só, com Velho pai, menino. E eu, especado. Um espantalho.
Pela tarde dentro, o tam-tam dobrado os batuques. Ao lado, a avenida para Matacuane, rasgando as enytranhas desse viveiro de negros. A Chipangara a volatilizar-se por entre a nebline fina e húmida. Esperar apenas o tempo necessário de apanhar o macimbombo e raspar-me. Para a rua dos monhés. Para a rua dos monhés, à procura de chamuças. Entretanto, o cheiro a incenso que me invadia as narinas, brotando das suas lojas e das janelas das suas casas de dois ou três andares, no máximo. O momento propício para esquecer Velha Maria.


Coimbra, 1979