sexta-feira, 28 de maio de 2010

DE NOVO, OS VINHOS

Por alguma razão, Vinhos de Portugal, de João Paulo Martins, é publicado há dezasseis anos. A última edição, Vinhos de Portugal, 2010, é sem dúvida excelente.

MÚSICA

Vida tão estranha, de Rodrigo Leão e Ana Carolina.
Objetos que guardam memórias.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

VINHOS

Gosto muito dos vinhos do Douro.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Canto prantado para Rui Knopfli na Ilha de Moçambique

Em Julho de 1993, fui, pela primeira vez, à Ilha de Moçambique. O Navio Escola "SAGRES" também. Senti um estremecimento interior que me deu a sensação de haver por ali passado algum dia em algum tempo. Dia e tempo indefinidos e imprecisos. Levava comigo A Ilha de Próspero, de Rui Knoplfi. Já tinha lido e relido Camões, já tinha descoberto poetas e fotógrafos moçambicanos e histórias dispersas, tão disseminadas como os sabores da Ilha, tão vivas e tão ricas que me paralisaram os sentidos e eu fui tomado por uma seiva de tranquilidade e nostalgia. O imã da mesquita ofereceu-me um cofió e uma cabaia. Mas percorrer a Ilha com o livro de Rui Knopfli nas mãos deixou marcas. (Voltarei um destes dias a escrever mais algumas linhas sobre a Ilha).
Por agora, relembro apenas que me encontrei com Rui Knopfli nos derradeiros dias de sua vida. Arrastava os ossos - já era somente uma réstia física de si próprio - mas manteve a tenacidade de manter-se de pé perante uma morte anunciada. Dias antes, efectivamente, eu parti para Sófia e foi nessa cidade que recebi a notícia do seu passamento.
Sucedeu que havia escrevinhado, na Ilha de Moçambique, as primeiras linhas de um poema que não terminei. Isso só aconteceu seis anos depois, quando me senti invadido pela nostalgia da escrita elegante de Knopfli. Depois, inseri-o numa disquete e nunca mais soube onde a guardei. Há dias, abri uma caixa com papéis e bugigangas e a disquete estava lá. E assim edito, pela primeira vez O Canto Prantado para Rui Knopfli na Ilha de Moçambique, em homenagem ao poeta e a um ser humano demasiado humano.

Canto prantado para Rui Knopfli na Ilha de Moçambique

Em memória do poeta falecido em Dezembro de 1997

No escuro silêncio das pedras de coral
sei de palavras e dotes, versículos e motes,
simulacros e silêncios de deuses ignorados,
gramáticas da fala, rostos voltados
sobre o mar de lajes onde os mortos gritam.

Vejo-te sentado no cais já desfeito,
sorvendo o sol em teu peito aberto.
A amurada no mar deserto
embala uma canção antiga
um choro de volteio
a trajectória indefinida
de um tiro de canhão
solto da garra das ameias
para o oceano, a imensidão.

Mal meus compassados passos
pisaram o chão sagrado,
escutei a voz fatal, o sentimento da poesia
e vi a lua de Meca sobre as pedras brancas
desta clara ilha, lidei com tua escrita,
linha após linha, verso após verso,
épica fantasia da modernidade
como se fosses Camões,Luis Vaz da nossa era,
e de teus lábios partisse
a palavra, o trovão e a quimera
do espalhado luso sémen no pó da fatalidade,
no destino contrariado, da ilusão do sangue
nas veias rebentado com poalhas de miragem.

Não tenho voz para te contar como em mil nove
e noventa e três uma barca branca de mil cores
se fez ao mar,ao largo mar que desfez mil amores
de marinheiros e seus segredos,
a branca barca arribada à baía ondulante
presa ao fundo das águas com seu ferro crepitante
em frente de negro corpo da mulher atraiçoada,
tornada pedra, negra pedra escarpada
onde fortaleza se ergueu com palácio e capela
sobre caniço e mesquita e cemitério de breu.

Vi de larga varanda caída sobre as águas
a branca vela enfunada da barca branca parada.
Recolhidas brancas linhas do velame no veleiro
restaram magros mastros, com o cordame preso
ao perfume dos frutos, em oferenda de gestos
e salamaleques diversos no cesto de mágoas carpidas.

O mar chão, as avermelhadas capulanas das mulheres
adornadas de msiro, cantaram a tua chegada.
Eu voltei-me para ti, poeta,peguei em teus versos
e iniciei meus terços na ilha de Próspero.

Incipiente fuga ao passado, voltas que a pedra deu
de mão em mão na mão dos homens cor de breu,
vi D. Jorge Mariz aqui chegar à fala contigo
e por artes, engenho e desespero
lembrar aos vindouros ante chão sagrado
que ali, sepultado, em vez do seu,poderia
estar corpo mirrado de algum gentio,
“ímpia a delida escrita que mal aflora a lápide”
para em tua pena se tornar pesado
o memorial dos mortos nossos do passado,
a glória naufragada, o suado corpo tombado
de encontro às rochas que os nativos ali exumaram
com vivas tochas do fogo divinizado.

Na outra ponta da ilha vi a docotomia
da vida, da história e do cansaço,
outras gentes desvendei, distantes e cúmplices
no outro lado do mar, devotadas ao cangaço,
partidas em pedaços de memórias nordestinas,
ressaibos das velhas lutas inglórias e intestinas
de xeicados, prazeiros e aventureiros
amassados na argamassa de pedras e macúti.

Poeta, já nada é como dantes. As pedras das casas
que amaste tombaram e com elas a caliça
dos sobrados senhoris. Já não se ouve voz
de comando nem som de botas viris
desafiando o desmando de sombras
esfareladas e patéticas.


Ilha de Moçambique, Julho de 1993 - Oeiras, Janeiro de 1999

sábado, 8 de maio de 2010

A PALAVRA DE FÚRIA

Em 1973, atribuíram-me o 1º prémio de um concurso literário de contos lançado pela PÁGINA JOVEM, do então NOTÍCIAS DA BEIRA, de Moçambique. Ganhei o prémio. Os concursos literários valem o que valem e nem sempre significam alguma coisa. Não importa. A sua publicação foi interdita por essa coisa espúria, inquisitorial e própria de ditaduras, a Comissão de Censura. A verdade é que nunca mais concorri a um prémio literário e o conto nunca foi editado até à presente data. Hoje, decidi editar o texto original, exactamente como foi escrito, a fim de prestar homenagem a Carneiro Gonçalves, na altura chefe de redação do Notícias da Beira e a Heliodoro Baptista, ambos no descanso eterno. Com eles, iniciei-me na escrita.

Eis, pois, com todos os seus defeitos, A PALAVRA DE FÚRIA.

A palavra de fúria
(Vencedor do 1º prémio do concurso de contos da Página Jovem do Notícias da Beira, Moçambique, em 1973, foi proibida a publicação pela Comissão de Censura mantendo-se inédito até à presente data)

Silábica, a palavra sai pela boca encharcada; e semelhante aos berros refractados na claridade da lua sob os pés, sai com as lufadas de hálito da tua barriga, assim, num borbulhar de cansaço, ou se queres, numa espécie de fastio imperturbável. E a cada voo na terra, no ar, nos teus cabelos, a palavra torna-se uma coisa turbulenta, cheia de fogo, sobretudo exalando a linguagem das baladas que a minha viola tece, brincando os dedos com as cordas profundas: é toda aquela substancia de sons, mesmo de voltas sobre arcos e arcos que as palmeiras esboçam, numa espécie de música violenta. E a palavra continua a sair.
Mais abaixo sustém-se a vibração de calor que se desprende do teu colo, como se fosse o vento seco nas noites de pasto, a afagar os bichos da madrugada: aí tens as árias melancólicas dos amantes e o apalpar da especulação no sexo. Se não, repara que posso muito bem cavar um vale macio entre os teus seios, sem te aperceberes da cauda comprida projectada pela lua, na parede. Mas não há que decidir entre as palavras e o baixio do teu umbigo perpassado de suor. Há apenas que decifrar a trajectória das crianças inúteis e saber ao certo se as nuvens pairam por cima das nossas cabeças, arrebatando os gestos bruscos dos sonhos ou se, na confusão dos altares, serás capaz de discernir as mãos que são tuas. Tenho pela certa de que te tornas um pouco mais e um pouco menos dura que as tuas tetas amendoadas e fazes crescer na testa o nervo com que apago a fúria: é quando se ergue na janela o sabor tropical da noite e repentinamente as tuas colinas se endurecem um pouco mais e o ritmo adocicado quebra-se num fracção de segundo, nas pedras.
Havia de dizer-te como a manhã surpreende a minha viola, enquanto procuras definir o espaço segregado pela distância dos braços. Mas não: é deixar que o clarão dos meninos suba ao halo dos deuses papudos e então tu contes histórias de feitiço, ao saberes que nenhuma catedral concebe o peso com que piso os teus flancos por debaixo das tuas saias, da forma que dás saltos de gazela assustada e depois te quedas branda:
“És mau.”
“Sim, sou mau. Sou o espelho das minhas carnes, miúda.”
“Por isso mesmo que és mau.”
“Porque até por isso talvez nem fosse mau.”
“Mas és... toda a noite me cansas com a tua viola e me fazes recitar os versos um por um...”
“Se dissesses: toda a noite cansas a minha boca nas tuas canções...”
“Cansar a minha boca nas tuas canções não será bem o teu termo, porque afinal, é contigo, com a tua viola que eu adormeço.”
“Mas eu não quero que adormeças: quero-te viva, como uma laranja imensa, rechonchuda.”
“Pois, está bem: eu fico viva como uma laranja.”
E então deixas que os rostos se fixem na zoada quebradiça das ondas do mar ao longe, e a voz tenha um suco áspero. De novo se cruzam no céu os resíduos da tua boca, e é mais um que passa, mais uma forma desbotada do lençol de púrpura. Como na guerra, fechas os olhos à claridade das bombas e beijo-os aliviado do pesadelo de sentir um espaço oco e os teus seios crescem ainda um pouco mais sem poderes esmiuçar um bloco ferrenho e estremeces. Depois, as tuas mãos descem vagarosas pelas colinas, por dentro da densidade com que uma mulher escuta o retinir dos flancos e o quebrar das estátuas de fogo. Mas é um descampado de insónias que não suportas e arredas-te gemendo de amor:
“Não vais fustigar os meus seios, pois não?”
“E tu sabes como eu fustigo os teus seios, miúda?”
“Bom... não dás pontapés?”
“E eu posso dar pontapés nos teus seios?”
“Não sei...”
“Ah, então não fustigo os teus seios.”
“Olha, mas toca-me assim...”
“Assim?”
“Não, assim não...assim.”
E eu toco: é um castelo de seda enquanto a viola cabe na alma, talvez sem cansaço ou talvez saturada, ao querer que tropeces o teu corpo no meu corpo, ou mais simplesmente, deixes escorregar os bordos da minha viola redonda, com a mesma força que fazes ao arrastar-te:
“Queres ver, miúda, tens o corpo da minha viola...”
“Não posso ter o corpo da tua viola!”
“Está bem, mas tens o corpo da minha viola... a concha do teu colo tem-na a minha viola repassada de baladas...”
“A concha do meu colo não tem baladas.”
“Olha, tu já viste no horizonte um peito que pulsa de raiva pela acidez com se apreende a dança dos mosquitos no capim?”
“Não, ainda não vi nenhum peito a pulsar de raiva no horizonte.”
“Mas já fragmentaste alguma vez, em bocados negros, o matope pela mesma acidez com que se apreende a dança dos mosquitos no capim?”
“Sim, já fragmentei o matope pela mesma acidez com que se apreende a dança dos mosquitos no capim.”
“E fragmentaste o matope com o estilete do meu nome?”
“Qual teu nome?”
“O mesmo que eu escrevo com os dedos no teu ventre.”
Depois viras a cara, sacodes os pulmões e lanças uma bofetada com toda a força. Mas o estilete continua a descrever círculos minúsculos, até cessar na moleza do chão que se abre por baixo dos pés. Podes regressar ao desenho mais lento e recortar na suavidade a distância tépida dos músicos subterrâneos: assim se faz o esboço de uma cidade submersa na tua chuva.
“É assim, palerma.”
“Não é, miúda... e estás a ver que não é.”
“Como tu disseste é que não pode ser.”
“Porque até pode ser mesmo... Ora vê: o estilete de que tu te serves é o mesmo que eu uso para fazer desenhos na tua barriga, na tua concha... não é?”
“É. Mas eu não vejo nada!”
“Pois, e o estilete faz desenhos na concha da minha viola.”
“Mas que tem isso a ver com baladas?”
“É que não sabes, miúda, a minha vontade de te chamar viola, porque afinal, és a minha viola e a viola é a minha miúda.”
“Eu sou a tua viola e a viola...”
“E a viola é a minha miúda e eu faço baladas para a minha miúda, para a minha viola.”
E assim é que vejo a curva apertada das tuas pernas, atravancada de gestos indecisos e meço, polegada a polegada, a longa fila de poros até ao enclave das tuas narinas, enquanto diriges a polpa ácida à tua gruta, ao de leve. E sei de uma coisa que perturba a tua alma, chegando mesmo a perguntar pela tua existência no meio das palmeiras, esfarelando os dedos um a um e martelando-os nas camisolas verdes, enxovalhadas e abundantes de tédio. Ou ainda esmiuçar os traços rectilíneos do teu corpo, sem que o reboliço dos sons dissipados esclareça a brutalidade das feras curvas e arreigadas, antes que a manhã surpreenda a mansidão da minha viola.
“Brinca aos saltimbancos que adormecem nas minhas costas”, dizes num sumário gesto.
“A minha viola transporta os vagalhões de silêncio para o teu fumo.”
“A tua viola vai acordar as corolas das histórias.”
“Sabes, a minha viola não vai acordar ninguém. Estou a pensar que ela abre covas no matope seco.”
“A viola que abre covas no matope seco...”
“Era mais simples dizeres que os amantes deitam fumo.”
“Eu prefiro a viola que abre covas no matope seco. Fala-me dela.”
“Da viola que abre covas no matope seco com aranhas e alacraus?”
“E as covas têm aranhas e alacraus?”
“Sim, as covas têm aranhas e alacraus.”
“Não faz mal. Os bichos da terra não mordem.”
“Olha que mordem...”
“Não. Os bichos da terra não mordem.”
“E se eu te disser que mordem?”
“Só mordem os que estão por cima.”
E então conto-te a estória da viola que abre covas no matope seco. Mas para isso trepo a um embondeiro cálido e ressequido e encho de água a tina das minhas mãos. Os ramos mexem-se paulatinamente na obliquidade do terreno e as formigas dispersam-se pelo tronco, descendo aos solavancos. É com movimentos mecânicos que limpo as mãos à camisa e afago com uma doçura extrema as ancas da minha viola.
Bastava que fizesses crescer a água na boca para veres o sorriso plácido ao abrirmos no matope covinhas de lustro, rodeadas de contra-fortes para não deixar sair bichinhos. E fazermos isso agachados, longe do buliço, antes das chuvas e acarretar nos bolsos saquinhos de água que despejávamos nas covas. Queríamos regar o mundo e dar-lhe vida. Depois esperavam-se meses até ao regresso das enxurradas e íamos vê-las num naufrágio e tu ficavas triste. Eu tocava uma balada. E a tua linha extensa picava como agulhas o céu. E dizias:
“Faz-me uma canção.”
“Uma canção de quê?”
“Faz-me uma canção.”
“Miúda, uma canção de quê?”
“Uma canção para eu cantar...”
“’Tá bem: vou fazer uma canção em que possas ver as veias dos meninos a palpitarem, sentados à minha volta e fazendo gestos compridos.”
“Gostas dos meninos sentados à tua volta?”
“Gosto dos meninos sentados à minha volta, que se atiram num sopro de mímica, ao chão, amarfanhando junto do peito um sonho esfarrapado.”
“E os meninos gostam da minha voz?”
“A tua voz é como um chocalhar de emoções, porque sai da tua boca em forma de estrela musical e a calma paira sufocante esmiuçando os passos da dança...”
“E os meninos gostam da minha voz?”
“E depois a força das papoilas desidratadas pelo calor e a rapidez com que formulas bonequinhos nos bordos da minha viola ou então as estatuetas...”
“Perguntei-te se os meninos gostavam da minha voz.”
“...ou então as estatuetas com que enfeitamos os carreiros no mato e que nós beijamos à noite.”
“Por favor, diz-me se os meninos gostam da minha voz.”
“Ouves os eixos dos meus ossos produzirem um género de amor digital?”
“Não ouço nada. Só vejo meninos que se riem da minha voz.”
“E vês as traves da minha viola a flutuarem no mesmo vapor das caldeiras e na mesma essência de pólvora que brota do teu perfume?”
“Não vejo mesmo nada disso.”
“ E sentes assim umas coisas corroídas como eu vou gastando as cordas da minha viola?”
“Já te disse que nada ouço, nada vejo, nada sinto.”
“Então os miúdos não gostam da tua voz.”
E tropeçavas na memória envelhecida do anjo bom, como as terras atulhadas de poços e mosquitos, quase num repouso completo, mas voltando em crescimentos fragmentados, a ter vibração quente dos pulmões. Porque as fábulas corrompiam-se de cal, de longe em longe afastando os tijolos dos teus mamilos, libertos das planícies áridas. Quase dores de espinhos.
Obsessivamente, foges da sombra despedaçada, num sem porquê e possuis uma coroa de flores nos braços, que ofereces à família.
Olha, miúda, trago-te a solidão num cálice com uma boca igual à da minha viola e no interior substitui-se o ziguezague das palavras por uma coisa de bolhas enormes, se quiseres partir sílaba por sílaba. Pensa que vais transformar o caudal dos rios em música e lavrar o fastio nas cordas de aço, esticá-las ligeiramente numa paciência de inquisidor e depois percutes, entre a água e as pedras, o fulgor dos animais bíblicos. Assim não te irritas. E na outra margem deixas a minha viola com remos para navegar à noite, debaixo do vulcão.
Então, virás ter comigo ao embondeiro, enquanto acabo de lavar a cara. Sabes que mais? O sono acorda os escorpiões estéreis e tu fazes-me lembrar os baús esquecidos cheios de traça.
Hás-de ouvir o golpe dorido da minha viola encaminhando-te num tempo de luz, enquanto as tripas estalam de vontade e as cordas mingam no ritmo das palavras que saiem. Acolhes-te na suavidade das mãos e o teu corpo incha. Ponto por ponto, a mulher expele o afagar da especulação no sexo e tu dás saltos de gazela assustada e as palavras continuam a sair da tua boca e a saliva inicia a curva dos teus seios. Mas não há que decidir entre as palavras e o baixio do teu umbigo perpassado de suor. Há apenas que decifrar a pouco e pouco a trajectória das crianças inúteis e saber ao certo se as nuvens pairam por cima das nossas cabeças, arrebatando os gestos bruscos dos sonhos ou se na confusão dos altares serás capaz de discernir as mãos que são tuas. Tenho pela certa de que te tornas um pouco mais e um pouco menos dura que as tuas tetas amendoadas e fazer crescer na testa o nervo com que apago a fúria, conquanto se passem de repente vinte anos e ainda serás de recitar os versos, um por um, embora os teus seios se tornem como duas papaias longas e aguadas. Mas ainda te chamarei miúda.
“Olá, miúda.”
“Sabes, tenho saudades da tua viola...”
“Da viola que abre covas no matope seco?”
“Sim, da viola que abre covas no matope seco. Era uma coisa como eu...que ficou na mesma.”
“Uma coisa como tu quando somavas dois parágrafos de possibilidades e marcavas com a língua os meus lábios...”
“E descobria o teu cheiro nos jogos de cabra-cega.”
“Ou que soubesses trincar a saliva no barro.”
De súbito, as árvores descem e as fibras transformam-se na lentidão das navalhas: há uma luz metálica sobre os teus ombros, puxando a rede dos olhos marejados entreabrindo o breve rumor das coxas tatuadas. No rio, a viola vai ganhando peso e tacteias qualquer coisa imensa, porque a chuva cai na tua boca e o verniz da minha viola desaparece lentamente.
“Miúda, recita-me os versos da minha viola.”
“Olha, e tu acreditas nas minhas histórias de feitiço?”
“Assim cheias de força e de deuses?”
“E tu acreditas?”
“Não, miúda, claro que não”.
De tal modo ficas perturbada e gesticulas sozinha enquanto bates o ventre com a mão: a terra traz-te uma fecundidade brutal, bem vista nos teus movimentos trémulos e hesitantes de outrora que tentam abrir-se, como um buraco feito pela minha viola no matope.
Havias de reparar no pai e na mãe a esfregarem os pès no chão dos canaviais, de enxada aos ombros, deslizando as unhas sobre os nenúfares e desnudando teu corpo aos poucos. Chapinhas na água como os bebés, aspergindo nos mamilos as indeléveis gotas brancas. Eles vêm banhar-se. Depois tornam-se mais profundos ao compreenderem o sentido da metamorfose nos charcos.
“Miúda, escuta a gota metálica dos lábios franzindo um espaço longo nos teus cabelos.”
“Não. Não quero. Eles podem ver-me.”
“Não, miúda. O pai cresce apenas com as papas de halo cinzento, ao passo que tu juntas a fúria nas tuas pernas.”
“Ao passo que eu desvendo...”
“Não desvendas nada. Sentes é um fio de espuma escapar-se pela ponta do campo. Ainda não viste que eu toco a vela do teu umbigo?”
“E franzir um espaço longo nos meus cabelos?”
“Isso... franzir um espaço longo nos teus cabelos.”
E os teus braços engrossam, arqueando na orvalhada o tumulto do gado, quando uma coisa verde como a fita de vime que pões nos teus cabelos deslizou entre socalcos, bufando.
Aqui, o pai e mãe sentem as patas estourarem e os chifres do búfalo em riste golfando uma rede de vapores salgados. É o momento de eles saírem da água e humedecerem a língua de canções. Eles dizem que a força está em ti, nos teus seios que intensificam o gosto sombrio das ramagens e na lagarta assustadora de pontas aguçadas.
“Olha, porque não voltas vinte anos atrás?”
“Porque não volto vinte anos atrás?”
“Sim, porque não voltas?”
“Porque não pode ser, miúda. Sabes o que representam vinte anos nas minhas canções e nas cordas da minha viola?”
“Não é assim uma coisa grande, impossível.”
“E vinte anos atrás representam para ti uma coisa pequena e possível?”
“Pode ser que sim.”
“Bah, não importa se podem ou não. Representam ou não?”
“Não sei.
“E não sabes porquê?”
“Bom, pensei que podias voltar vinte atrás.”
“Até daí talvez.”
“Estás a ver, sempre acreditas nas minhas estórias de feitiço.”
“Sempre não acredito nas tuas estórias de feitiço.”
“E se o pai viesse agora com a mãe?”
“E que têm o pai e a mãe a ver com as estórias de feitiço?”
“Podia ser que não gostassem da tua viola.”
“E depois, se eles embirrarem com a minha viola?”
“Sabes, já lá vão vinte anos sobre a coroa de flores que ofereci à família...”
“ E a coroa de flores tinha força, não era mesmo, miúda?”
“Pois tinha. Tinha mesmo muita força.”
“E porque tinha muita força...”
“Não. E porque tinha muita força envelheceu a cabeça do pai.”
“Ah...”
Depois atiras os peitos para a frente e aperta-los nos braços, antes que saltem nas folhas do teu bambolear e estremeçam no banco dos nenúfares. É veres abulir a resignação de ficares muda à minha frente e executares uma marcha voluptuosa e encarniçada apontando cm um dedinho rechonchudo as formas sepulcrais de dois arrastões que surgem do sol, inclinados ao peso das madeixas e das patas: é o silêncio que regressa no pai e na mãe (a mãe mais buliçosa).
“É que o pai canta as árias melancólicas do avô.”
“E o avô gostava da sua neta.”
“Pois. E o avô gostava da sua neta.”
“E o pai quer a filha quieta.”
“Sim. O pai quer a filha quieta.”
“Quieta ou a saltitar?”
“Quieta apenas.”
“E se eu tocar?”
“Só tens de ficar quieto.”
Bem digo, miúda. Há vinte anos atrás tinhas mais força, quando os teus seios ainda não tinham crescido nem gotejavas a saliva na minha boca, pela única razão de saberes recitar os versos e dares empurrões à minha viola. Mas vejo que cresces voltada para a cara do pai, a respirar como um potro endiabrado e atirando uma infinidade de peças genealógicas sobre o rosto da minha viola.
“Ei, filha, esta porcaria não faz parte do contexto dos teus avós”, disse o pai.
“Não, pai. Mas prolonga a eternidade do contexto dos meus avós”.
“Eles cantavam apenas como eu hoje ainda canto”.
“Mas não podes dizer, pai, se hoje és forte, que amanhã tens um império na tua casa.”
“E se eu espetar com isto nos cornos da janela?”
“As esquinas hão-de rodopiar, pai.”
“E a viola soltará um grito fatal?”
“Sim. A viola soltará um grito fatal e há-de encher o ar de entulho, de tal modo que não possas respirar.”
E o pai pega na viola, parte a viola.

Corro a olhar-te na nudez ajustada às mais estranhas curvas do teu corpo e a penetrar na sensação da água, enquanto sorris de neura.
“Acreditas nas minhas estórias de feitiço?”
“Não. Não acredito nas tuas estórias de feitiço, miúda.”
“Viste que o pai quebrou a tua viola na janela?”
“Se eu vi, miúda?”
“Sim. Se tu viste.”
“Não, não vi. Mas ouvi um baque surdo entre as tuas rosáceas.”
“E o ar a encher-se de entulho?”
“E o ar a encher-se de entulho.”
“Estás a ver... então sempre acreditas.”
“Talvez, miúda. Porque têm de tornar-se um género de fúria.”
“Sim. Têm de tornar-se um género de fúria.”
Só pela única maneira de compreenderes que silábica, a palavra sai pela boca encharcada. E semelhante aos berros refractados na claridade da lua sob os pés, sai com as lufadas de hálito da tua barriga, assim, num borbulhar de cansaço ou, se queres, numa espécie de fastio imperturbável.

Beira, Dezembro de 1972